
Apoiado nas batidas da bateria e, logo a seguir, no som de castanholas, a intro “Be My Baby” denuncia a sua natureza musical e sonora. Trata-se de música tão protegida e irreal, que só pode ter sido criado nesse lugar de ilusões que dá pelo nome de estúdio. É uma canção de fingimentos, de recriações de sons (que só existiram uma vez), mas ao mesmo tempo tão verdadeira que gostávamos que nunca se calasse. Como poucas, exemplifica a pop enquanto lugar onde artificio e a autenticidade são a mesma coisa.

Constituída por canções que irrompem da narrativa, a banda sonora (sobretudo aquela construída a partir de temas pop), existe algures entre as personagens e os espectadores, ligando o território das imagens ao seu exterior. “Be My Baby” faz parte da vida de Charlie Cappa e do próprio Scorcese, e através de um portal feito de memórias de sons e imagens, passou a fazer parte da minha. Não guardo obviamente recordações de Little Italy, mas apenas a lembrança de ouvir certa música em Mean Streets e de tudo aquilo que associo a essa circunstância.
Com o tempo fui afastando o tema das The Ronettes do filme e para tal contribuiu a televisão onde vi isto ou, talvez isto (não me recordo muito bem). O que interessa é que, quando dei por mim, ia-me apaixonando e, ainda hoje, não sei por quê, ou por quem. Ronnie Specttor aparece provocadoramente irresistível. Sorri para os lados, controla o riso, pisca os olhos, meneia as bem vestidas ancas e faz uma careta ou outra. Estaria apaixonar-me pelo seu rosto e gestos de rapariga deslumbrada? Pelos tremeliques do seu “baaaabbbyyyyyyyyy”? Por aquelas palavras admiravelmente tontas? Pela ideia do seu tempo?

Resta, então, a pergunta: se não podemos fingir que Phil Spector nunca existiu, poderemos, ao menos, gostar deste tema pop como se fosse a primeira vez?
O bloguista britânico Marcello Carlin é muito menos optimista e, num interessante ensaio, desanca na herança musical do produtor nova-iorquino, reduzindo-a uma amálgama, de contornos totalitários, de letras conservadoras, sons pouco originais e raparigas amordaçadas. À parte alguns delírios próprios do politicamente correcto mais doentio (sons que lembram violações ou violência sobre mulheres?), é caso para dizer que também Marcello Carlin não escapa ao fantasma de Spector. Até podemos aceitar (com cautela) a acusação de misoginia explicita/implícita em “Be My Baby”, mas o que não falta na história da pop são letras “más” que dispensam exegeses psicológicas às intenções do(s) autor ou interrogatórios póstumos. Quem já não cantou, ou não quis ouvir, “Be My Baby” durante a bebedeira da adolescência?

Quanto ao pobre vanguardismo do “Wall of Sound”de Spector, sobretudo face ao som da Motown, julgo que Carlin não faz mais do que convocar uma questão de gosto. De facto, a música das girls-groups da editora de Detroit era mais dançável, ligeira e elegante, mas em contrapartida (e aqui excluímos a carreira de Spector nos finais dos anos 60, bem como nas décadas de 1970 e 1980), a música das Ronettes foi sempre mais agressiva, quente, abrasiva, mais real. Basta ouvir, também, “Do I Love You?”, “So Young” e “I Wonder”.
É Ronnie Spector que defende, em diversas entrevistas, o rock (& roll) como o seu género musical preferido e o estilo que definia as The Ronnetes. Ora, é provável que este dado irrite sobremaneira Marcello Carlin, que não hesita em associar-lhe certos males (não deixa dançar, é pesada, masculina, branca), ao mesmo tempo menospreza a "pouco sofisticada" liberdade de Verónica. É que a sua voz não só não está amordaçada, como impera sobre a nuvem de sons, fazendo dançar todos os que dançam mal. Ou seja, talvez possamos dizer que, no fim, o fantasma que espreita de longe, sobre o ombro da cantora, não é o de Phil Spector. Mas o daquela rapariga que estava naquele sítio quando ouvimos Be My Baby.
7 comments:
brother james,
prose is flowing: o riff a não ceder à nostalgia, crítica amplificada. encore,
diogo@zürich
"É Ronnie Spector que defende, em diversas entrevistas, o rock (& roll) como o seu género musical preferido e o estilo que definia as The Ronnetes."
Última faixa do Siren: Happy Birthday Rock'n'Roll. :)
Olá Vítor,
Conheço muito mal a obra da Ronnie pós-Spector.
Aconselhas alguma coisa?
nao as conheci mais adoro as musicas dela as ronettes
0adoro as musicas das ronettes
0adoro as musicas das ronettes
0adoro as musicas das ronettes
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