Wednesday, April 25, 2007

BE MY BABY - the ronettes



Há canções que são o primeiro som, a primeira batida. Reconhecemo-las assim que entram no nosso quotidiano e, não raras vezes, confundimo-las com esse reconhecimento. “Be My Baby", das The Ronettes, é uma canção assim. Basta o "pom-pom-pom-pam" da bateria. Mas esse reconhecimento não é só o da canção. É também, o reconhecimento de algo mais. De três raparigas a cantar. Do olhar e do rosto de Ronnie Spector /Veronica Yvette Bennett. Do preto-e-branco envelhecido de antigos programas musicais. Ou da pop, quando ainda não sabia olhar para a câmara da televisão.
Apoiado nas batidas da bateria e, logo a seguir, no som de castanholas, a intro “Be My Baby” denuncia a sua natureza musical e sonora. Trata-se de música tão protegida e irreal, que só pode ter sido criado nesse lugar de ilusões que dá pelo nome de estúdio. É uma canção de fingimentos, de recriações de sons (que só existiram uma vez), mas ao mesmo tempo tão verdadeira que gostávamos que nunca se calasse. Como poucas, exemplifica a pop enquanto lugar onde artificio e a autenticidade são a mesma coisa.
“Be My Baby” tardou a atravessar-se no meu caminho. Tê-la-ei ouvido algures, mas sem a atenção devida, até ao dia em que vi “Mean Streets”, de Martin Scorcese. Foi aqui onde finalmente a encontrei, não por acaso, sob a forma de uma sequência inicial: Charlie Cappa (Harvey Keitel) encosta a face à almofada, depois de acordar de um pesadelo e, logo a seguir, entra o genérico, com fotografias e um filme caseiro que apresentam as personagens. Durante alguns anos não consegui separar a canção do filme. Era como se pertencesse à superfície daquelas imagens, ou estivesse dentro daquela história. Martin Scorcese nunca escondeu o fascínio pela música pop-rock, mas este será, porventura, a obra onde esse sentimento melhor se descobre.
Constituída por canções que irrompem da narrativa, a banda sonora (sobretudo aquela construída a partir de temas pop), existe algures entre as personagens e os espectadores, ligando o território das imagens ao seu exterior. “Be My Baby” faz parte da vida de Charlie Cappa e do próprio Scorcese, e através de um portal feito de memórias de sons e imagens, passou a fazer parte da minha. Não guardo obviamente recordações de Little Italy, mas apenas a lembrança de ouvir certa música em Mean Streets e de tudo aquilo que associo a essa circunstância.
Com o tempo fui afastando o tema das The Ronettes do filme e para tal contribuiu a televisão onde vi isto ou, talvez isto (não me recordo muito bem). O que interessa é que, quando dei por mim, ia-me apaixonando e, ainda hoje, não sei por quê, ou por quem. Ronnie Specttor aparece provocadoramente irresistível. Sorri para os lados, controla o riso, pisca os olhos, meneia as bem vestidas ancas e faz uma careta ou outra. Estaria apaixonar-me pelo seu rosto e gestos de rapariga deslumbrada? Pelos tremeliques do seu “baaaabbbyyyyyyyyy”? Por aquelas palavras admiravelmente tontas? Pela ideia do seu tempo?
Para lá da sua inocência, da sua alegria tocante, esta é, porém, uma canção “imperfeita”. Está, inevitavelmente, demasiado próxima do seu autor, um déspota dentro e fora do estudo, tão reconhecido pelo talento, como pela necessidade doentia de controlar os outros. Phil Spector é se quiserem um dos fantasmas da canção. É quem espreita por detrás de Ronnie, não só como “produtor”, mas também como seu (ex)marido, e é quem perverte, do mesmo modo que completa, a inocência de “Be My Baby.” Durante cinco anos, a cantora foi mantida prisioneira virtual do criador do Wall of Sound e à separação forçado do mundo exterior seguiu-se a fuga, o divórcio e o fim artístico de Vernica Yvette Bennett.

Resta, então, a pergunta: se não podemos fingir que Phil Spector nunca existiu, poderemos, ao menos, gostar deste tema pop como se fosse a primeira vez?
O bloguista britânico Marcello Carlin é muito menos optimista e, num interessante ensaio, desanca na herança musical do produtor nova-iorquino, reduzindo-a uma amálgama, de contornos totalitários, de letras conservadoras, sons pouco originais e raparigas amordaçadas. À parte alguns delírios próprios do politicamente correcto mais doentio (sons que lembram violações ou violência sobre mulheres?), é caso para dizer que também Marcello Carlin não escapa ao fantasma de Spector. Até podemos aceitar (com cautela) a acusação de misoginia explicita/implícita em “Be My Baby”, mas o que não falta na história da pop são letras “más” que dispensam exegeses psicológicas às intenções do(s) autor ou interrogatórios póstumos. Quem já não cantou, ou não quis ouvir, “Be My Baby” durante a bebedeira da adolescência?
Quanto ao pobre vanguardismo do “Wall of Sound”de Spector, sobretudo face ao som da Motown, julgo que Carlin não faz mais do que convocar uma questão de gosto. De facto, a música das girls-groups da editora de Detroit era mais dançável, ligeira e elegante, mas em contrapartida (e aqui excluímos a carreira de Spector nos finais dos anos 60, bem como nas décadas de 1970 e 1980), a música das Ronettes foi sempre mais agressiva, quente, abrasiva, mais real. Basta ouvir, também, “Do I Love You?”, “So Young” e “I Wonder”.
É Ronnie Spector que defende, em diversas entrevistas, o rock (& roll) como o seu género musical preferido e o estilo que definia as The Ronnetes. Ora, é provável que este dado irrite sobremaneira Marcello Carlin, que não hesita em associar-lhe certos males (não deixa dançar, é pesada, masculina, branca), ao mesmo tempo menospreza a "pouco sofisticada" liberdade de Verónica. É que a sua voz não só não está amordaçada, como impera sobre a nuvem de sons, fazendo dançar todos os que dançam mal. Ou seja, talvez possamos dizer que, no fim, o fantasma que espreita de longe, sobre o ombro da cantora, não é o de Phil Spector. Mas o daquela rapariga que estava naquele sítio quando ouvimos Be My Baby.

Friday, April 20, 2007

coisas que ficaram de fora




Enquanto faço um pausa longuíssimmmmaaaaaaaaaaaa na publicação de mais um texto sobre outra canção, aqui deixo uma coisita que ficou por publicar no cessado UM:

NIRVANA- THE TRUE STORY
Everett Trues
Omnibus Press
Precisará o mundo de mais outro livro dedicado ao grupo americano? O jornalista britânico Everett True acha que sim e tem um currículo que lhe confere alguma autoridade na matéria. Afinal foi ele que, perante a indiferença de 99% da imprensa musical, acompanhou como jornalista do Melody Maker os primeiros anos da explosão de Seattle (1988-1991). Testemunhou a construção da Sub Pop, ajudou a divulgar os Nirvana, de quem se tornaria amigo, e trouxe o rock americano de volta às páginas dos jornais ingleses. Eis um currículo que justifica, pelo menos, alguma curiosidade em torno de Nirvana-The True Story. Mas o interesse do livro não se fica pelo tema. Vive também na forma como este é tratado, algures entre a biografia do grupo e a do próprio Everett True.
As recordações sobressaem num diálogo escrito, com músicos, editores e outras personagens, e predomina uma oralidade que não é, de todo, estranha à escrita jornalística. Como se estivesse perdido num solitário ajustes de contas com o passado, o autor interrompe-se, lamenta a falha de memória, e revolve, entre outros assuntos, a sua atracção por Courtney Love, a amizade com os Nirvana ou a paixão genuína por certas bandas. No fim, por vezes, só restam contradições irresolúveis, sem resposta, que ameaçam exasperar o leitor menos avisado. Este pudor involuntário acaba por ser oportuno, como acontece nas páginas dedicadas ao último ano da vida do músico de Aberdeeen, e permite que se abram clareiras: as ligações dos Nirvana à cidade de Olympia, a primeira digressão na Inglaterra, os grandes concertos do início dos anos 90 (Reading 91 e 92) e a construção da América como bastião final do rock. No fim é também um livro sobre o jornalismo musical e as suas ilusões, descobertas, desilusões. Sobre o que é gostar de um banda de que ninguém (ainda) gosta, quando ninguém (ainda) está a ouvir.