Não é muito habitual encontrar “Schizophrenia” em listas ou tops dedicados às melhores canções de uma década ou de um qualquer ano. Mas nem por isso deixa de ser uma das mais belas, comoventes e misteriosas canções da música pop-rock. Tenho uma vaga ideia da primeira vez que a ouvi. Foi numa noite de 1987. Dormitava na companhia de um gravador e de uma cassete – tinha acabado de ouvir o primeiro lado – quando fui acordado pela bateria abafada de Steve Shelley, que parecia estar a tocar algures no prédio, as guitarras suplicantes e a voz, a voz assustadoramente sincera de Thurston Moore. Depois não me lembro de mais nada. Talvez de ficar preso à cama e de procurar no escuro qualquer coisa que desse uma figuração, uma forma ao que ouvia. Julgo que algumas imagens foram surgindo, indistintas e em catadupa, e que eram, quase todas, de cinema. Mas a memória trai-me e não me recordo dos filmes. Penso que tentei “perceber” a letra, antes de me deixar tomar por aquela maravilhosa confusão. Todas as grandes canções rock e pop, sobretudo quando somos adolescentes, são maravilhosas confusões.
Procurar reconstituir o momento em que ouvi “Schizophrenia” será tarefa pouco rigorosa, quiçá até inútil, mas compreensível. Afinal há uma pequenina e secreta esperança de que algo mais assome à tona. Não sei se este foi o caso. Eventualmente, tudo aquilo que a memória dele reescreve não é mais do que um amontoado de invenções e devaneios criados pela vida com outras canções e imagens.
É a primeira faixa de Sister, disco que prenuncia, ainda que de forma tímida, a passagem do grupo norte-americano para cenários mais luminosos ou juvenis (deixando para trás os velvets e a no wave). Paradoxalmente, é também a obra que afirma os Sonic Youth como uma banda sem talento para o sucesso comercial. Longe de representar o salto pop esperado depois de Evol, Sister é um disco sujo e bruto, resultado de uma gravação num estúdio equipado apenas com material analógico, que parece encerrar o ouvinte no seu interior, ou, na pior das hipóteses, recusar a sua entrada.
A herança de Glenn Branca e da no wave está depurada ao máximo. As guitarras de Thurston Moore e Lee Ranaldo, afinadas de forma pouco convencional, andam à volta de motivos melódicos simples. Os riffs parecem cristais reluzentes e está tudo contido, apudorado, não existe estridência ou excessos. A bateria de Steve Shelley é autoritária, mas este raramente bate nos pratos e as vozes mantêm-se, quase sempre, no tom de quem conta uma história. A única violência permitida é o crescendo que se segue à intervenção de Kim Gordon, mas até aí os sons permanecem suplicantes, doridos. Não há afirmações ou ordens, apenas ecos, texturas, lamentos.
Em "Sex Revolts", livro sobre as questões de género e o rock, Simon Reynolds analisa os temas “Secret Girl”, “The Sprawl” e “Eliminator JR”, para discutir a condição da(s) personagens femininas nas letras da banda nova-iorquina. De forma oportuna, aproveita também para lembrar a ambiguidade no modo como o grupo tratava temas como a violência, morte, sexo e delinquência. Esquece-se, contudo de identificar
Evol e
Sister como dois discos de música (rock) “ambiental”, “etérea” (feminina?) – na senda de
Isn´t Anything e
Loveless, dos My Bloody Valentine, para não recuarmos 10 anos. É que, apesar de assumidamente
rock, o quinto longa-duração dos SY possui uma qualidade que a liberta dessa condição. Neste contexto, "Schizophrenia" é uma canção cinemática, pois conjura musicalmente e sonoramente imagens e narrativas. Não se trata, no sentido mais banal, de
música de ou para cinema, mas de música que vive muito para lá dos limites dos sons ou das biografias dos músicos. Não há confissões dramáticas, referências verosímeis, canções de amor realistas. Perante este pudor inconsciente, este desconforto face às luzes do palco, podemos mesmo dizer que não há músicos. Apenas canções-imagens, feitas por artistas anónimos.
O tema é conduzido numa espécie de dueto por Thurston Moore e Kim Gordon. O primeiro descreve um perturbante encontro com uma rapariga que padece de uma doença mental (esquizofrenia), enquanto a baixista parece dar voz à personagem feminina, debitando frases sem sentido aparente. A versão oficial é a de que os Sonic Youth andaram, na época, a ler Philip K. Dick e a este respeito há quem sugira várias leituras, ou encontre referências ao escritor americano, a propósito de uma palavra ou de uma frase (é o caso de
sister, numa alusão à irmã gémea do escritor, falecida com apenas cinco semanas). Mas os Sonic Youth foram sempre uns brincalhões. E se na esquina dermos com a Lilith, de Robert Rossen? Ou com a Mabel, de
An Woman Under The Influence? Ou com alguma heroína hitchcockiana? E se imaginarmos as palavras de Thurston Moore nos lábios de um miúdo de Larry Clark?
Deliremos um pouco, agora: "Schizophrenia" evoca as mulheres de Cassavetes. Evoca as glaciais e louras anti-heroínas de Hitchcock. Os rostos dos retratos de Larry Clark. E leva-nos aos imaginários de Edgar G. Ulmer e David Lynch (infelizmente um realizador de péssimo mau gosto no que a rock diz respeito). Mais do que qualquer outra canção, sintetiza o imaginário de um certo cinema e de uma certa América imaginada.
E agora, uma pequena curiosidade: para quem não se lembra ou desconhece o facto, a capa da primeira edição em vinil de
Sister trazia uma fotografia de uma adolescente norte-americana, da autoria de Richard Avedon. Intitulada "Sandra Bennett, Twelve Year Old, Rocky Fort, Colorado, 8/23/80", trata-se de uma das imagens mais populares da série de In The American West – serviu, inclusive, de capa ao livro. Avedon, contudo, obrigou o grupo e as editoras (a SST e a Blast First) a retirarem a reprodução e hoje no lugar do rosto tenso, vulnerável e americano de Sandra Bennett, está um rectângulo preto.
O que queriam os Sonic Youth significar com esta imagem. Recordar Lung Leg, a actriz do vídeo de “Death Valley 69” e da capa de
Evol? Fixar “uma imagem” dessa América? Ou apenas brincar com o espectador/ouvinte, colocando-a junto a outras, aparentemente também ali coladas de forma arbitrária? É possível que a simples ausência de critérios tenha ditado a escolha das fotografias, mas convém desconfiar do dedo “conceptual” da artista Kim Gordon e de uma hipotética colaboração, para o efeito, de Dan Graham, também ele presente com uma imagem, neste caso de “Homes for América”. Mais ou menos programado, o mosaico de imagens de Sister é um exemplo perfeito de como a capa de um disco pode servir de prólogo ou epílogo visual às canções, sobrepondo imagens a sons ou vice-versa.
Se o significado de Schizophrenia oferece dúvidas, já a sua origem oferece mais certezas. Foi gravada num espaço e tempo definidos. A sua singularidade é produto de um contexto determinado: por uma cena musical, pelos meios usados (instrumentos e estúdio) e pelos desejos, expectativas, intenções e experiências dos músicos. Schizhophrenia é aquele riff, aquela voz, mesmo quando já é outra coisa qualquer, como, por exemplo. o Schizophrenia do coro de idosos Young At Heart – até agora os únicos (intérpretes) que “reconheceram” a canção que o tema guarda.
Oo fascínio de Schizophrenia deve-se ao sentimento misto que provoca, algures a exultação e melancolia, ou a resignação e alegria. Aquilo a que poderíamos chamar (para o bem e para o mal) de sentimento indie-rock. Para além desse efeito, só restarão, provavelmente, apenas imagens: o rosto de uma mulher, a curva de uma estrada ou alguma memória mais difusa da nossa biografia.